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Hitler e o Socialismo: cinismo de ontem e de hoje.

  • Leandro Dias
  • 17 de ago. de 2017
  • 19 min de leitura

Hitler "socializando" com os amigos

Como muitos devem saber eventos terríveis ocorreram na cidade de Charlottesville, EUA. Naquela cidade americana, convocaram-se alguns atos supremacistas brancos após o governo local decidir pela retirada da estátua de Robert E. Lee, general do sul escravocrata na Guerra de Secessão. Supremacista branco é o nome "genérico" para neonazista e racistas em geral. No último destes protestos, o mais obviamente nazista de todos, também não passaria impune na era da informação. Logo, gerou-se um contra-protesto, no meio dele, a anti-fascista (antifa) estava presente. Após uma noite de tochas no estilo KKK, de cântigos "sangue e solo" (um slogan nazista) e gritos de "judeus não vão me substituir", seguiu-se um novo dia de animosidade. Durante um dos contra-protestos, um dos supremacistas brancos, nos mesmos moldes dos terroristas em Nice (2016), Londres e Estocolmo (ambos em 2017), atropelou uma multidão com o seu carro, matando uma pessoa e ferindo outras 30. Supremacistas brancos, Enfim, mas não estou aqui para falar de Charlottesville. Há um bom tempo que observo um jogo de cinismo, "fake news" e reescrita da história tentando "jogar no colo" a paternidade à esquerda do nazismo. Como numa Lei de Godwin argumentativa, o velho "reductio ad hitlerum": nazistas são ruins. Eu associo seu argumento ao nazismo. Logo você é ruim. Como se uma falsificação digna dos mais baixos estudiosos fossem "resolver" alguma argumentação minimamente séria. Assim, resolvi resgatar e atualizar um texto de meu antigo blog.


Qualquer pessoa que sabe ler pode baixar uma cópia do livro do próprio Hitler e ler suas 600 páginas prolixas e ver o quanto seu ódio por comunistas, marxistas e o que hoje chamariam de "esquerdopatas" ou "dos direitos humanos", quem não quiser, também fiz um resumo de algumas citações do autor sobre comunistas e marxistas, aqui. Então chegamos ao ponto.

Acima vemos dois cartazes do discurso de posse do Hitler de 1932 onde podemos ler: "Faça a Alemanha livre do Marxismo" ("Macht Deutschland vom Marxismus frei") e no outro cartaz: "O marxismo deve morrer para que a nação [alemã] erga-se novamente" ("Der Marxismus muß sterben damit die Nation wieder auferstehe"). O link do vídeo está aqui. (informações reforçadas pelo blog Rosa)

Afinal, se certamente Hitler, assim como os nazistas de Charlottesville, odeiam marxistas e comunistas, por que então Hitler regularmente se afirmava um socialista?


Para responder esta questão precisamos reafirmar o óbvio: o marxismo é uma tradição socialista, mas não é a única. Primeiramente precisamos sair da dicotomia primária, simplificadora e inútil – “socialismo x capitalismo” – que só alimenta manuais de trolls online da direita neoliberal e da esquerda de cartilha. Então, afirmar, com base no estudo histórico e econômico, sem anacronismos e ad hominens, que assim como Hitler que se dizia socialista mas era contra o SPD (partido social-democrata alemão e contra o socialismo dos comunistas), o próprio Karl Marx identificou uma série de tipos de socialismo no seu tempo. Ora, pois sempre existiram inúmeras correntes do socialismo, mesmo antes de existir o próprio marxismo. O terceiro capítulo inteiro do livro-panfleto de Marx, o Manifesto Comunista, chamado Literatura Socialista e Comunista, é dedicado à identificação dos outros tipos de socialismo e o porquê, segundo ele, estes modelos de socialismo estão condenados ao fracasso. Esta parte do seu livro-panfleto parece até hoje não ter entrado na cabeça de muitos dos seus leitores, na esquerda ou na direita.


Assim, para identificarmos alguns tipos de socialismos relevantes a esta questão, faz-se importante dar uma rápida passada neste capítulo do Manifesto Comunista como fonte primária e acrescentar o que for relevante aos dias de hoje. Assim temos como tipos identificáveis de socialismo já no tempo de Marx:


1. O socialismo feudal: é o socialismo que pretende voltar as relações sociais pré-capitalistas, buscando superar os problemas sociais gerados pelo mundo burguês, retornando à sociedade patriarcal e hierárquica do Ancien Regime. Embora algumas áreas remotas do mundo ainda mantenham relações semi-feudais, hoje é uma corrente inexistente como força política. Porém, suas idéias caminham muito próximas do que chamam de socialismo cristão: superaria as mazelas do mundo capitalista moderno através da caridade e relações entre senhor, vassalo/nobre e camponês, construindo uma sociedade harmoniosa onde todos têm o seu lugar divinamente estabelecidos, não havendo espaço para o individualismo burguês e o materialismo proletário. Ainda hoje o Socialismo Cristão tem importantes núcleos pelo mundo, tentando superar as agruras capitalistas através da solidariedade, trabalho voluntário e políticas estatais assistencialistas e laços religiosos. O Papa Francisco poderia ser considerado um proeminente membro do Socialismo Cristão, a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho ambos tem origem no socialismo religioso.


2. O socialismo pequeno-burguês: formado por pequenos proprietários urbanos (pequeno-burgueses), artesãos e pequenos camponeses. Ora ameaçados de pobreza e proletarização pela concorrência com a grande indústria e esmagados pelos grandes proprietários rurais, esta vertente socialista reconheceu os problemas do capitalismo moderno e do feudalismo anterior, mas sua solução era simplesmente criar meios para evitar o que parecia inevitável: seu negócio/propriedade ser destruído pela concorrência com os grandes capitalistas e proprietários. “Para a manufatura, o regime corporativo; para a agricultura, o regime patriarcal [familiar]”.


Essa vertente socialista existe até os dias de hoje em muitos lugares do mundo e, com menor ou maior grau, consegue proteger a pequena propriedade urbana e rural da concorrência do grande capital através de impostos, taxações diferenciadas, regimes especiais (métodos inexistentes na época de Marx) e medidas muitas delas elaboradas por não socialistas como Otto Von Bismarck (criador das pensões públicas de aposentadoria por exemplo) e John Maynard Keynes. Com Keynes, nos anos 1920 e 30, esta vertente ganhou importante embasamento teórico e aplicação econômica, permanecendo até hoje como alternativa capitalista ao liberalismo selvagem que arruinou o mundo na crise de 1929. Porém, com o imenso poder adquirido pelo grande capitalismo e subsequente concentração de propriedade e renda nos últimos 30 anos, essa vertente aparece cada vez mais, como solução sistêmica, uma utopia. Figuras proeminentes desta vertente poderíamos colocar Pepe Mujica, do Uruguai e, de uma maneira até mais radical, o "socialismo escandinávo" onde forte presença estatal e socialista caminha lado ao lado com importantes corporações capitalistas.


3. O socialismo Alemão ou o “verdadeiro” socialismo”: Essa é a mais importante passagem para nossa análise do socialismo de Hitler e o nazismo, pois toca em pontos fundamentais da separação entre o “socialismo alemão” (que se auto-proclamava “socialismo verdadeiro”) e o socialismo de Marx (chamado hoje de marxismo). Para Marx, o “socialismo alemão” era uma versão do socialismo pequeno burguês, mas mais radical. Para estes socialistas, dizia o autor: “a supremacia industrial e apolítica da burguesia ameaça a pequena burguesia de destruição certa, de um lado, pela concentração de capitais, de outro, pelo desenvolvimento de um proletariado revolucionário. O "verdadeiro socialismo" pareceu aos pequenos burgues como uma arma capaz de aniquilar esses dois inimigos. Propagou-se como uma epidemia”. (Manifesto Comunista, cap. III, pág. 54).


Marx prossegue em trecho ainda mais importante:


“[o socialismo alemão] proclamou que a nação alemã era a nação tipo, e o filisteu alemão, o homem ideal. A todas as infâmias desse homem ideal deu um sentido oculto, um sentido superior e socialista, que as tornava exatamente o contrário do que eram. Foi consequente até o fim, levantando-se contra a tendência “brutalmente destruidora” do comunismo, declarando que pairava imparcialmente acima de todas as lutas de classes. Com poucas exceções, todas as pretensas publicações socialistas ou comunistas que circulavam na Alemanha pertencem a esta imunda e enervante literatura.” (Manifesto Comunista, cap III, pag 54-55, grifo nosso).

Voltaremos neste ponto mais adiante.


4. O socialismo conservador ou burguês: “uma parte da burguesia procura remediar os males sociais com o fim de consolidar a sociedade burguesa” (MC, cap III, pag 55). Com esta frase Marx abre o trecho sobre o socialismo conservador. Para Marx, “os socialistas burgueses querem as condições de vida da sociedade moderna, sem as lutas e os perigos que dela decorrem”. É ao mesmo tempo o socialismo reformista e o social-liberalismo, que buscam transformar as condições de vida material dos trabalhadores, sem no entanto mexer nas relações burguesas de produção.


No fundo, querem apenas reformas administrativas que acabam por fim, aprofundando o domínio burguês da sociedade.

“Livre câmbio, no interesse da classe operária! Tarifas protetoras, no interesse da classe operária! Prisões celulares no interesse da classe operária!”. Enfim, “os burgueses são burgueses – no interesse da classe operária” (MC, cap III, pag 57).


Soa quase como anedota, mas recentemente vimos isso de maneira evidente nos governos brasileiros dos ultimos 30 anos: “Subsídios às montadoras, no interesse dos trabalhadores”. “Desoneração de grandes fortunas, no interesse dos trabalhadores!”, "redução de impostos de corporações, no interesse dos trabalhadores". Ou como dizia Delfim Netto: "é preciso crescer o bolo para depois reparti-lo" ou dar migalhas para os trabalhadores. Usando o critério de Marx seria a vertente mais comum do socialismo hoje e de tão cretina que nos soa, poucos que usam deste colorário têm a cara de pau de se intitularem socialistas.


5. O socialismo utópico: Marx coloca nesta categoria todos os socialistas que se atém mais a escrever sobre uma sociedade futura ideal perfeita, do que a pensar a analisar as reais condições que geraram a sociedade presente e como não reproduzi-las novamente. Ele diz:


“[sonham] com a realização experimental de suas utopias sociais: estabelecimento de falanstérios isolados, criação de colônias no interior, fundação de uma pequena Icária, edição de uma nova Jerusalém e, para dar realidade a todos esses castelos de ar, vêem-se obrigados a apelar para os bons sentimentos e os cofres dos filantropos burgueses” (MC, cap III, pag 59).

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Nesta categoria, atualmente entrariam desde os que pensam em refundar uma sociedade hippie isolada, ou nos que vêem idilicamente uma sociedade tribal emulando uma sociedade indígena idealizada ou em alguns com pretensões mais elaboradas, semi-estatais, como o movimento Zeitgeist todo. Além é claro, do niilismo utópico de pensar que é mais fácil a destruição global do que pensar em mudanças para o mundo: "vem meteoro!"

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6. Socialismo Libertário: Por fim, apesar de Marx colocar o socialismo libertário pejorativamente como socialismo utópico, a tradição socialista libertária, também conhecida como “anarquismo”, ainda é bem representativa e foi responsável por grandes momentos da história dos trabalhadores brasileiros. As greves de 1917 (São Paulo) e 1918 (Rio de Janeiro) conseguiram feitos sem precedentes no país, sendo pouco depois esmagada com violência, mas marcando profundamente o movimento sindical na primeira metade do século passado. E ainda, vários anarquistas participaram da fundação do Partido Comunista Brasileiro, apesar das fortes divergências que as duas correntes sempre tiveram Além disso, há uma forte influência anarquista na fundação da cultura cooperativista e sindicalista também no Brasil, mas fundamentalmente na Espanha, França, Itália e Alemanha.


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Enfim, para qualquer olhar mais atento é óbvio que existem várias vertentes de socialismo não marxistas. Só no simplismo rasteiro de 140 caracteres ou de "youtubers" querendo "likes" que as definições são tão simples. Se o próprio Marx dedicou bastante do seu tempo a criticar estes socialismos que via como fadados ao fracasso ou como embustes e enganação dos trabalhadores, para separá-los do socialismo que ele dava as novas bases teóricas, é porque o termo "socialista" não apenas tinha multiplos usos, como poderia dizer coisas totalmente diversas, como até hoje. Assim, voltamos a questão: afinal, o que era o "socialismo de Hitler"?


O socialismo em Hitler


É incrível notarmos como Marx consegue descrever muito bem o tipo do socialismo reacionário dos fascistas e apontar com antecedência em torno de 70 anos, o cerne e o embuste do socialismo dos fascistas. Repetirei sua citação para entendermos melhor:


“[o socialismo alemão] proclamou que a nação alemã era a nação tipo, e o filisteu alemão, o homem ideal. A todas as infâmias desse homem tipo deu um sentido oculto, um sentido superior e socialista, que as tornava exatamente o contrário do que eram. Foi consequente até o fim, levantando-se contra a tendência “brutalmente destruidora” do comunismo, declarando que pairava imparcialmente acima de todas as lutas de classes.” (MC, cap III, pag 55)


Ora, não era exatamente este o discurso fascista? A causa nacional está acima das mesquinhas lutas de classe e interesses individualistas dos burgueses e dos trabalhadores. “Alemanha acima de tudo”. O alemão é o filisteu ideal, a nação alemã, a ideal e superior. Portanto, não é preciso fazer qualquer “rocambole explicativo”, usar fontes duvidosas de fanáticos marxistas rasteiros, ou usar retórica escapista de trolls neoliberais para encontrar o distanciamento evidente entre nazismo e marxismo. Antes mesmo do fascismo existir per se, Marx já repudiava a base teórica e cultural do socialismo pequeno-burguês radical e nacionalista de onde o fascismo alemão surgiu e que, na visão dele, era uma “imunda e enervante literatura”. Hitler em próprio punho não poderia resumir melhor esse argumento:


“Quem quer que esteja preparado para fazer da causa nacional a sua própria, em tal extensão que saiba não haver maior ideal que a prosperidade de sua pátria; quem quer que haja compreendido nosso estupendo hino nacional, “Deustchland über Alles”, para significar que nada neste vasto mundo ultrapassa, a seus olhos, a Alemanha, povo e terra – esse homem é um socialista” (HITLER, Adolf IN: Hitler Reden und Schriften, citado por William Shirer, opus cit. pg. 139)


Hitler em pessoa definia que o socialismo para ele é um radicalismo nacionalista. Mas vamos além, O historiador Peter Gay vai buscar lá no século XVIII as origens deste socialismo autoritário alemão, típico do fascismo, e nos revela com mais clareza quais as características deste tipo de socialismo:


“A luta de classes é tolice, e a Revolução Alemã, produto da teoria, é tolice também. O instinto alemão, que, arraigado no sangue é verídico, vê as coisas diferente: ‘O poder pertence a todos. O indivíduo o serve. O todo é soberano. O rei é apenas o primeiro servo de seu estado.' (Frederico, o Grande). Todos têm o seu lugar. Existem comandos e obediência. Assim, desde o século XVIII, vinha sendo o socialismo autoritário – autoritativer – em essência antiliberal e antidemocrático – isto é, se pensarmos no liberalismo inglês ou na democracia francesa”. O alemão verdadeiro deve reconhecer as necessidades do momento e, submisso a elas, deve transformar o socialismo do século XVIII em socialismo autoritário do século XX. ‘Juntos, prussianos e socialistas erguem-se contra o inglês dentro de nós contra a visão do mundo que penetrou em toda a existência de nosso povo, paralisou-o, e roubou-lhe a alma’. A única salvação está no ‘socialismo prussiano’; aí estão a busca […] pela comunidade e a liderança, na linguagem dos acampamentos dos oficiais”. (Gay, 1978, pg. 103).


Podemos ainda, voltando em Marx, buscar sua contundente crítica ao populismo bonapartista, típico de ditadores bem posteriores, do discurso que viria a ser largamente utilizado por fascistas no mundo inteiro para movimentar sociedades contra o comunismo (marxismo). No 18 Brumário de Bonaparte, Marx escreve:

“Durante o mês de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no Partido da Ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Tinham “salvo” a sociedade dos “inimigos da sociedade”. Tinham dado como senhas a seu exércitos as palavras de ordem da velha sociedade – “propriedade, família, religião, ordem – e proclamado aos cruzados da contra-revolução:


“Sob este signo Vencerás”. A partir desse instante, tão logo um dos numerosos partidos que se haviam congregado sob esse signo contra os insurretos de junho tenta assenhorear-se do campo de batalha revolucionário em seu próprio interesse de classe, sucumbe ante o grito: “Propriedade, família religião, ordem.” A sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o círculo de seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo. Toda reivindicação ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um “atentado à sociedade” e estigmatizada como “socialismo”. E, finalmente, os próprios pontífices da “religião e da ordem” são derrubados a pontapés de seus trípodes píticos, arrancados de seus leitos na calada da noite, atirados em carros celulares, lançados em masmorras ou mandados para o exílio; seu templo é totalmente arrasado, suas bocas trançadas, suas penas quebradas, sua lei reduzida a frangalhos em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos pela ordem são mortos a tiros nas sacadas de suas janelas por bandos de soldados embriagados, a santidade dos seu lares é profanada, e suas casas são bombardeadas como diversão em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem.” (18 Brumário, pág. 36 e 37)


"Propriedade, Família, Religião e Ordem". Esse já era denunciado por Marx como um slogan vazio e hipócrita dos anti-marxistas, comunistas e anarquistas ainda no meio do século XIX. Ora, "Tradição Família e Propriedade" é o slogan de muitos anti-comunistas hoje, fortemente ligados aos fascistas e integralistas brasileiros. Não tiveram os nazistas apoio de variados setores sociais, de burgueses e pequeno-burgueses, em nome dos principais valores tradicionais reacionários, da “verdadeira” família alemã, contra o “comunismo”? Não foi em nome dos "valores tradicionais" alemães que vários setores sociais apoiaram a Noite das Facas Longas, que esmagou as vertentes 'mais socialistas' no interior do nazismo, esmagou industriais não alinhados (principalmente os que estavam envolvidos com a prisão de Hitler 12 anos antes), esmagou, prendeu e matou comunistas, socialistas da social-democracia e condenou milhares de alemães à ruína em nome da Alemanha “ideal”?


Porém, isso tudo não parece suficiente para os que associam marxismo e nazismo em sua espiral de cinismo e ignorância. Entre vários outras tentativas superficiais, uma que parece recorrente é a utilização de uma citação de Hitler, encontrada na sua enorme biografia escrita pelo jornalista John Toland. A citação seria supostamente retirada de um discurso de 1 de Maio de 1927 e segue assim:


“Nos somos socialistas, nós somos inimigos do atual sistema econômico capitalista de exploração dos economicamente fracos, com salários injustos, com a inadequada avaliação do ser humano de acordo com sua riqueza e propriedade ao invés da responsabilidade e da performance, e nós todos estamos determinados a destruir este sistema sob todas as condições” (John Toland, Hitler, p 224 – em inglês).

No entanto, se formos no original alemão, encontrado na compilação de discursos “Hitler: Reden, Schriften, Anordnungen, Februar 1925 bis Januar 1933“ (que pode ser obtido em qualquer livraria sobre o tema), onde temos mais de 10 fontes primárias (jornais da época) para o referido discurso, não encontraremos qualquer passagem semelhante a esta. E é incrível como Toland, jornalista prêmio Pullitzer, pôde ter errado essa importante citação. Se tivesse sido atribuída a nazistas anti-hitleristas como Otto Strasser (expulso do Partido Nazista por ser cripto-marxista), seria mais compreensível, ainda mais pela época (1927). Mas Hitler jamais diria algo assim. John Lucaks, autor conservador e anti-marxista do livro “O Hitler da História” (1997) afirma que John Toland inventou muitos trechos de seu livro para dar dramaticidade, talvez este seja um dos casos. Enfim, para nossa argumentação aqui é apenas mais um reforço.


Além disso é comum aos associadores do nazismo com o marxismo, demonstrarem com a moeda comemorativa do Dia do Trabalho de 1934, onde figura uma água nazista com a foice e o martelo em cada lado, inegável associação do nazismo com o comunismo. Oras, uma águia com uma foice e um martelo é exatamente a cota de armas da Áustria (Primeira República 1919), e o país era alvo de intensa propaganda pró-nazista em 34 e Hitler já planejava o golpe naquela país, mas seu líder, o austrofascista Dollfuss era absolutamente anti-nazista. A comparação entre os dois está na foto abaixo:


Moeda do Dia do Trabalho nazista e heráldica da bandeira da Áustria.


Vale lembrar, até para melhor entender o próprio símbolo da Áustria adotado em 1919 fora de qualquer contexto comunista, que a foice e o martelo já eram símbolos representando o trabalho do campo e a cidade há certo tempo e foi por isso que os comunistas o escolheram e não o contrário.


1934 foi o ano que os nazistas deram um golpe - mal sucedido - na Áustria, exatamente entre Maio-junho daquele ano. A propaganda nazista da época tentava conquistar os austríacos, historicamente anti-alemães (por conta da própria história do país no Sacro Império), a adentrar as fileiras nazistas. Lembrando também que esta é a mesma república austríaca que tinha Ludwig von Mises como principal conselheiro econômico do austrofascismo (1932-34) do ditador Dollfuss. Assim para longe do simplismo panfletário anti-comunista, a foice para representar o campo está presente em diversos brasões europeus ainda na Idade Média. O martelo como símbolo do trabalho também já era mais do que popular e também podia se encontrar isolado ou combinado com a picareta. Talvez assim se explique o uso do símbolo pela Áustria e também pelos nazistas, já que nem todos os partidos comunistas usavam a foice e o martelo como símbolo (ele só foi adotado pela União Soviética no final de 1919). Além disso, vale lembrar também a célebre passagem de Hitler sobre a simbologia adotada pelo partido:


"Só a cor vermelha de nossos cartazes fazia com que afluíssem às nossas salas de reunião. A burguesia mostrava-se horrorizada por nós termos também recorrido à cor vermelha dos bolchevistas, suspeitando, atrás disso, alguma atitude ambígua. Os espíritos nacionalistas da Alemanha cochichavam uns aos outros a mesma suspeita, de que, no fundo, não éramos senão uma espécie de marxistas, talvez simplesmente mascarados marxistas ou melhor, socialistas. A diferença entre marxismo e socialismo até hoje não entrou nessas cabeças. Especialmente, quando se descobriu que, nas nossas assembleias tínhamos por princípio não usar os termos ‘Senhores e Senhoras’, mas ‘Companheiros e Companheiras’, só considerando entre nós o coleguismo de partido, o fantasma marxista surgiu claramente diante de muitos adversários nossos. Quantas boas gargalhadas demos à custa desses idiotas e poltrões burgueses, nas suas tentativas de decifrarem o enigma da nossa origem, nossas intenções e nossa finalidade.


A cor vermelha de nossos cartazes foi por nós escolhida, após reflexão exata e profunda, com o fito de excitar a Esquerda, de revoltá-la e induzi-la a frequentar nossas assembleias; isso tudo nem que fosse só para nos permitir entrar em contato e falar com essa gente." (HITLER, Minha Luta, pag. 361, grifo nosso)


Como mestre da propaganda e da oratória, as referências que Hitler fez tinham finalidade explícita: confundir e induzir ingênuos e curiosos a frequentar as assembleias e eventos nazistas. Neste sentido, Hitler foi um dos pioneiros do marketing político e do discurso populista moderno. Assim, como Marx já denunciava em 1848 sobre o "socialismo alemão", muitos alemães caíram no embuste do socialismo fascista e apoiaram com vigor o projeto nazista, uma “epidemia” (nas palavras de Marx).


Mas enfim, o que de fato era o socialismo de Hitler?


Como vimos, existem muitas formas de socialismo. Por exemplo, as pensões públicas por velhice (aposentadorias) foram inventadas por Otto von Bismarck nos anos de 1870. Assim como outras seguridades sociais para cidadãos alemães foram inauguradas em seu governo, resolutamente anti-marxista (inclusive com leis específicas contra os comunistas). As empresas estatais modernas, com dinheiro público de impostos, foram largamente inspiradas em socialistas não marxistas como Louis Blanchi e Charles Fourrier, a serviço do Estado Frances. Até mesmo clássicos liberais como Adam Smith, poderiam hoje, sob os critérios que se utiliza vulgarmente no discurso anti-comunista, ser classificado como “socialista”, o autor escreve entre vários outros trechos:


“Os sujeitos de cada estado devem contribuir para o sustento do governo, o máximo que puderem, em proporção às suas respectivas habilidades, ou seja, em proporção à renda que eles possuem sob proteção do Estado”. (Riqueza das Nações, Livro V, capítulo II)


“Tudo para nós mesmos e nada para outras pessoas, parece, em qualquer era do mundo, a máxima vil dos mestres da humanidade”. (Riqueza das Nações, Livro III, capítulo IV)


Ora, Smith sugere taxação progressiva e depois uma crítica pesada das elites parasitárias que atrapalham "a riqueza das nações". Um esquerdopata. Se formos mais a fundo, podemos observar a lógica de Ludwig von Mises, exposto em “Critique of Interventionism” que tenta justificar essa associação:


“O Intervencionismo busca reter a propriedade privada dos meios de produção, mas comandos autoritários, proibições em especial, são criadas para restringir as ações de proprietários privados. Se estas restrições atingem o ponto em que todas as decisões importantes são feitas através de comandos autoritários, se não é mais o motivo do lucro de proprietários, capitalistas e empreendedores, mas razões de estado que decidem o que deve ser produzido e como deve ser produzido, então, nós temos socialismo, mesmo que retendo o selo de propriedade privada” (Mises, Critic to Inverventionism, página 15-16)


Sob este critério, praticamente todos os países capitalistas dos últimos 200 anos foram socialistas. A necessidade de alimentar, armar e financiar exércitos, funcionalismo público para correios, polícia, bombeiros, demanda para certo planejamento central, organização estatal, impostos e criação de empresas estatais para suprir fraquezas do setor privado em tempos de crise. Para não falar na expansão militar que visa dar benefícios gordos ao empresariado nacional, como Cecil Rhodes ou a Cia. Das Índias Orientais bem sabem (procure saber). É curioso o anti-estatismo seletivo: exército e polícia não parecem importar muito os liberais anti-socialistas. Imagino que considerem, olhando Mises, que caso as decisões importantes do Estado estiverem motivadas pelo lucro privado e sejam feitas pelo comando de capitalistas e empreendedores, talvez este Estado não seja tão autoritário e ruim pro capitalismo assim, por mais que fossem brutais contra os trabalhadores. Só desta maneira para entender como “campeões da liberdade” como Mises, Hayek e Friedman, deram apoio seja direto ou ideológico ao fascismo austríaco e à ditadura de Pinochet.


Assim, para não estender o que já está bem extenso, podemos concluir que, como diversos líderes com a mínima preocupação com a realidade econômica e social de seus países, Hitler tomou uma série de medidas que podem ser consideradas hoje socialistas. Diante de uma enorme crise financeira ele estatizou setores da economia da mesma maneira que recentemente, na crise de 2008, vários empreendimentos capitalistas foram salvos pelo Estado nos EUA e Europa e nos primeiros até mesmo estatizou-se temporariamente a Ford Motors para salvá-la da falência.


Hitler também estatizou alguns bancos para favorecer seus interesses, especialmente os bancos judaicos numa série de 'expropriações raciais' vis. Sua política financeira no entanto, favoreceu largamente seu grande aliado privado o Deutsche Bank. Além disso, no que posteriormente chamou-se de ‘keynesianismo de guerra’, incrementou a demanda militar para movimentar a industria e o emprego nacional, aumentando consideravelmente o papel do Estado na economia. Porém fez isso fortalecendo os principais fornecedores privados nacionais e internacionais: Krupp, Bayer, IBM, Ford, até mesmo a Renault, a serviço do governo fascista de Vichy, sob ocupação nazista, capturou seus lucros privados com a política socialista dos nazistas. Isso para não entrarmos no debate de que se considerarmos o Partido Nazista uma entidade privada - como de fato era -, o número de privatizações na Alemanha nazista foi assustador. Sobre a política industrial e a posição nazista, Otto Strasser, nazista rival de Hiler escreve:


“Eu nunca disse que toda a propriedade deva ser socializada. Ao contrário, eu sustentei que devemos socializar as propriedades que se mostram prejudiciais ao interesse nacional. Se não forem tão culpadas, eu deveria considerar um crime destruir elementos essenciais de nossa vida econômica. Pegue o fascismo italiano. Nosso estado nacional socialista, como o estado fascista, irá proteger tanto o interesse dos empregadores como o dos trabalhadores e se reservar ao direito de arbitrar em caso de disputa”. (Hitler, IN: Strasser: Hitler and I, pag 112)


Além disso, no campo social, Hitler fortaleceu os centros comunitários, grupos mirins e sedes sindicais, agora sob bandeira nazista, com atividades que estimulassem a integração e participação popular. Claro, isto se você não fosse judeu, comunista, cigano, socialista (do tipo social-democrata), católico não submisso, qualquer um considerado “degenerado” e alguns outros "não-gratos" pelo regime. Enfim, pegou a lógica de grupos como os escoteiros, associações cristãs de moços e etc, embebeu-as na ideologia nazista, e as colocou a serviço da "integração social germanizante". O regime até mesmo pensou num imenso hotel de lazer coletivo na praia de Prora, para uso dos trabalhadores, porém, como o “carro do povo” (volkswagen), jamais foi usado pelo povo e ficou abandonado.


Assim, embora bastante questionável o teor desse estímulo ao coletivo, é inegável que esse aspecto fosse importante aos nazistas. É importante lembrar que estes estímulos e perspectivas não são invenções nazistas, são comuns no mundo todo nas mais diversas vertentes ideológicas e não tem um aspecto positivo ou negativo a priori ou mesmo socialista per se.


A organização comunitária para fins coletivos pode ter os mais variados aspectos, uns belos, outros terríveis.


Dos exercícios coletivos em fábricas, tão populares no Japão, Coréia do Sul e China; dos “community centers” fundamentais na organização de pequenas cidades norte-americana; a cultura do “retribuir” o que a sociedade lhe deu, levando ao trabalho voluntário, tão comum em culturas protestantes pelo mundo. O aspecto social da política só é ignorado por gente desonesta ou ignorante, desde de Aristóteles sabemos que “o homem é um ser social”. Por outro lado, temos a Klu Klux Klan como exemplo negativo evidente; os grupos que se reúnem para espancar homossexuais ou, para citar um exemplo do cinema, a comunidade no filme “A Praia”, que vendo seu “paraíso” ameaçado, em nome do coletivo, exclui os indivíduos indesejáveis.


Enfim reforçamos o óbvio: o socialismo de Hitler não tinha absolutamente nada de marxista. Era o socialismo da “gemeinschaft” alemã, da comunidade alemã, em torno dos interesses nacionais alemães, seja de Estado, seja do capitalismo alemão, seja do que os nazistas atribuíssem como interesse coletivo. O socialismo dos nazistas era o socialismo das tropas, o socialismo militar, das trincheiras da Primeira Guerra, onde todos os homens eram iguais na sua imensa possibilidade de morrer ou na miséria que viveram no pós-guerra. Sua intenção não era resolver a alienação do trabalho e do homem, excluído de sua essência pela exploração do sua mão de obra por terceiros, massacrado por jornadas estafantes pela aristocracia burguesa. Não. A sociedade que os nazistas queriam formar, mesmo se – num esforço quase impossível – ignorássemos a brutalidade com seus inimigos, era, ainda assim, hierárquica, injusta, reacionária e extremamente alienada. Uma sociedade onde somente os considerados fortes e capazes seriam plenos, um triunfo vil do darwinismo social e do racismo. Uma distopia do ideal iluminista que inspirou Marx e tantos outros socialistas humanitários do século XIX. Uma sociedade a ser evitada em qualquer tempo.


Leandro Dias Texto originalmente publicado em 2014 sob o título "Hitler e o Socialismo"


Referências:

HAYEK, Friedrich: O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro, Bibliex, 1994.

HITLER, Adolf: Mein Kampf: Minha Luta. São Paulo, Centauro, 2001.

LUCAKS, John: O Hitler da História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

MARX, Karl: O Manifesto Comunista; Ebooks Brasil, 1999 (link)

MARX, Karl: O 18 Brumário de Bonaparte, São Paulo, Boitempo 2011 .

MISES, Ludwig von: Crique of Interventionism; mises.org (link)

NARLOCH, Leandro: Guia Politicamente Incorreto do Mundo; São Paulo, Leya, 2013

SHIRER, William: Ascensão e Queda do III Reich (vol. I), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962.

SMITH, Adam: A Riqueza das Nações, São Paulo, Nova Cultural, 1996

STRASSER, Otto: Hitler and I; Boston, Mifflin, 1940

TOLAND, John: Adolf Hitler; Garden City, NY; Doubleday, 1976

VOLNHALS, Clemens von (org): “Hitler: Reden, Schriften, Anordnungen, Februar 1925 bis Januar 1933″; Saur, 1992

 
 
 

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